quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

O amor aos livros

Os livros foram objecto do meu amor desde a meninice. A paixão foi primeiro dirigida ao livro como objecto em si. A primeira memória é testemunho disto: eu era ainda demasiado pequeno para ter aprendido a ler, deveria ter entre três e quatro anos. Na altura estava em casa de uma tia avó que cuidava de mim enquanto a minha mãe estava internada no hospital. O meu pai tinha uma venda de pão e levantava-se às quatro da manhã para ir à panificação buscar o pão acabado de cozer e distribuí-lo pelas casas dos seus fregueses ainda antes de qualquer depósito ou padaria terem aberto as portas.Não tinha pois horário para tomar conta de uma criança de tão tenra idade. As suas visitas eram rápidas e demasiado escassas para me trazerem notícia e consolo sobre a saúde da minha mãe. Por isso ou para me calar o pranto, a tia Lucinda prometeu que o meu silêncio estóico de homem grande -pois os homens não choram- valeria alguma prenda enviada pela minha mãe. O meu pai apanhado desprevenido sentiu-se na obrigação de me trazer um presente. A falta de tempo fez com que a prenda anunciada demorasse a chegar o intervalo de duas visitas. Finalmente após a ansiedade da espera o presente extraordinário chegou sem ser Natal ou dia de aniversário. Era um livro de histórias maravilhosas.Tinha em cada página um quadro feito com silhuetas perfeitas como sombras chinesas. Não podiam ser mais explícitas: os tricornes, as espadas dos homens de casaca, suas botas de tacão alto, os vestidos majestosos das princesas, seus sapatinhos de fivela, seus dedos finos deixando pendentes os lencinhos bordados, os penteados em forma de abóbora, os cavalos, as carruagens, os pássaros nas árvores, os castelos e palácios, as feiticeiras, os animais, os meninos pobres,os meninos que se portavam bem... O livro tinha algumas linhas de escrita ao fundo de cada página que serviriam de certo para explicar aos mais crescidos tudo o que não pudessem entender para o caso,julgava eu, de não estar ali presente para lhes contar a história. Por essa altura uma irmã da tia Lucinda veio de visita por uns dias e trouxe a neta. Quase da minha idade essa minha prima em terceiro grau seria uma companheira de brincadeiras. A tia Lucinda assim disse prometendo alegria e distracção durante a estadia. O que é provável nem sempre é possível e a verdade é que o meu território foi invadido por um ser que conseguia chorar mais alto do que eu por motivos que me eram incompreensíveis. Sempre que ela chorava eu apanhava uma palmada ou as que fossem necessárias até ser eu a chorar. Só assim ela ficava apaziguada soluçando de mansinho. Alegria sim mas não minha, distracção? Mas que distracção?! Tive de partilhar os pequenos lápis de cor e as folhas de papel branco que eram raras e preciosas. É claro que a partilha não era a comunhão e assim vi-me privado do lápis vermelho e o do verde escuro reduzido ao cor-de-rosa e ao castanho. A tragédia porém ainda não tinha acontecido. O meu precioso livro foi alvo da cobiça da minha prima. Um dia tinha-a apanhado em vias de começar a riscar o branco imaculado sobre o qual as preciosas silhuetas se recortavam. Evitei mesmo a tempo a iconoclastia e nunca mais lhe emprestei o meu livro. O meu desvelo pelo livro que de alguma forma me trazia a lembrança da minha mãe e a sofreguidão da minha posse aumentaram o desejo da minha prima. Sem contemplações desatou a berrar encarnada de fúria, babando e ranhosando até espumar. "O que foi?" , "...o que fizeste à menina?!", "...confessa o que fizeste!! "Querida o que foi que ele te fez?" -Entrecortado pelo soluçar profundo de tirar a respiração, ela lá balbuciou que eu não lhe emprestava o livro - "e que tinha ficado combinado com a tia Alzira tudo partilhar. Ela emprestara-me todos os brinquedos e eu não lhe emprestava o Livro." A tia Lucinda muito religiosa, praticante ,honesta e honrada mas sobretudo adepta da Justiça de Salomão. Explicou clara e crua: ou eu emprestava o livro ou ela dividia-o ao meio. Tentei argumentar que ela riscava o livro, que ele era meu, que era um presente da minha mãe... Em vão. A tia Lucinda rasgou o livrinho ao meio e deu metade a cada um. A minha prima satisfeita guardou a sua metade. Eu horrorizado fugi sem querer ver o que restava da única coisa que me dava o conforto pela ausência dos meus pais. Salomão ameaçara com a espada dividir ao meio um recém nascido para satisfazer duas mulheres que disputavam a sua maternidade. A mãe verdadeira gritou para impedir o golpe da espada e rogou para que a criança fosse entregue à outra mulher. A sabedoria de Salomão fez com que a falta de piedade da falsa mãe se revelasse e assim ficasse desmascarada. Quanto a mim nesse dia senti a dor profunda, o desgosto e a desolação perante a destruição. Aprendi que a justiça tinha os olhos vendados para não tomar partido mas que isso sendo uma coisa boa a impedia também de ver para além da sua própria razão e isso podia causar danos terríveis.

domingo, 21 de dezembro de 2008

O Quê mais Felosas?

Vendedor de banha da cobra

A procura da chave

A poda das árvores

Os golpes que não nos abatem não nos tornam mais fortes. Marcam-nos profundamente e deformam-nos, como a poda nas árvores.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

José Saramago - Memória como a de Elefante

Lembro-me do José Saramago sentado junto da tasquinha dos metalúrgicos Na Alameda D. Afonso Henriques. Ficava lá autografando os seus livros para leitores pouco prováveis: operários e trabalhadores com pouca escolaridade. Nessa altura era da parte dele um acto de militância mas também de generosidade. O homem de ar austero sabia de certo quanto valia. Os que como eu lhe sabiam o nome e lhe tinham lido uns livros sentiam orgulho pela sua notoriedade. Sentiam de alguma maneira que ele projectava o seu esforço anónimo, e lhe dava sentido e valor. Pergunto-me hoje se o seu subtil sorriso nos lábios enxutos seria por causa do Sol de Maio, do erro no cálculo da probabilidade face ao resultado de autógrafos oferecidos, ou da alegria de ser entre pessoas de trabalho comemorando o seu dia em liberdade. Memória como a de Elefante não serve para reviver dores do passado, serve para prevenir que as dores futuras aconteçam, ou no caso de não se poderem evitar, não sejam tão devastadoras.

domingo, 23 de novembro de 2008

Felosa

Felosas

HERBERTO HELDER

Que Viva Herberto Helder muitos mais anos.

Poemas de Adília Lopes

_________________Eu escrevo__________________ _________________pequeno-almoço______________ _________________os poetisos escrevem________ _________________almoço pequeno______________ _____________________________________________ _____________________________________________ _________________Sobre a erva________________ _________________sobre a relva_______________
_____________Dia_______________________ _____________sem poesia________________ _____________não é dia_________________ _____________é noite escura____________ _______________________________________ _______________________________________ _____________Mas a poesia______________ _____________é noite escura____________

sábado, 22 de novembro de 2008

Adília Lopes É preciso ler Adília Lopes!

Em tempos li mas sem ler, uns poemas da Adília, de fugida, sem prestar muita atenção. A envolvente cómica em que me foi apresentada não me cativou e havia nos poemas umas baratas e outras coisas tão prosaicas que não podiam ser para levar a sério. Como qualquer carrancudo sou muito exigente com as coisas que me fazem rir e não me ri.Pensei como era possível alguém ser poeta com um nome daqueles - Adília Lopes. Não me lembrei que é tão bom ou tão mau como Fernando Pessoa - Pessoa é nome de gente?- Nem dei conta que era igualmente improvável alguém poder chamar-se Jorge de Sena,ou como seria possível escolher o nome Herberto Helder para um poeta... O preconceito é um fenómeno estranho e complexo que traduz impreparação, imaturidade. Agora anos depois, encontrei uns livros da Adília e gostei muito. "LE VITRAIL LA NUIT * A ÁRVORE CORTADA " de 2006 e "CADERNO" de 2007 são dois livros da &etc que comprei e releio.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Fernando Pessoa (último ano) Azulejo

A famosa arca de Fernando Pessoa e alguns dos seus papeis originais vão à praça. Ali bem perto (300 m) de onde repousam os seus restos mortais no Mosteiro dos Gerónimos, vão ser leiloados no Centro C. de Belém para quem os queira e possa comprar. Não sabemos ainda se o Estado Português através dos Governantes e Administradores reinantes exercerá poder de opção ou sequer terá capacidade de exercer tal poder. Papel por papel o mercado está cheio de papeis e o Fernando até compreenderia que os seus, comparativamente aos de um qualquer banco descapitalizado, são menos importantes. Por isso ele que como JESUS CRISTO não percebia nada de Finanças mas conhecia a natureza dos Banqueiros e de outros seres como traças e caruncho nunca achou importante ,como JESUS CRISTO,ter biblioteca. Ambos sabiam que a certa altura morrerão os papeis as arcas e ____________ ___________ ___________ a tabuleta também, e os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,__________ __________ __________ __________ E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. ___________ ____________ ____________inTabacaria, de Álvaro de Campos
Foi decidido ontem pela Comissão Europeia, esse Olimpo de Professores, suspender a normalização que obrigava a que 26 produtos agrícolas tivessem o aspecto de serem iguais. Boa notícia para os produtores de miniaturas e Fenómenos do Entroncamento que antes desaproveitavam a sua produção ou tinham de a desbaratar. Contudo como estas decisões de gente ínstruída nunca são fáceis nem precipitadas, a medida só produzirá efeito a partir do próximo verão. Têm tempo assim os produtores de pré-avisar os laboratórios de genética que com eles trabalhavam e se atarefavam na procura da cenoura cilindro perfeito, na Beringela sem curvatura, na fava sem casca e sei lá que mais. "Porreiro Pá!"

O Sr. Professor Baptista

Baptista = Bapetista: como bala; pe como em cape; tista como em artista

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Ao senhor professor Baptista com reconhecido apreço pelo contributo que deu para a formação da minha personalidade e a todos, mas todos, os senhores professores que fazem deste País um País grande e ditoso apesar de pequeno no tamanho. Refiro-me aos senhores Professores que na melhor tradição da tele-escola nos chegam sobretudo pela televisão,não me refiro aos que aparecem por breves segundos em alguma manifestação,mas sim aos que falam e sabem tudo: da glória histórica da História, à glória futebolística do Futebol, do Comentário Político à própria Política e nos provam que somos grandes.



O Baptista trajava fatos escuros riscados a tira-linhas. Hoje continuaria a estar na moda. 
O Baptista vestia terno e relógio com corrente no bolso do colete. 
O Baptista tinha caspa. 
O Baptista tinha pouco cabelo. 
O Baptista puxava a guedelha de orelha a orelha para tapar a calva. 
O Baptista fumava Porto ou Português Suave. Fumegava pelas ventas como um dragão. 
O Baptista não travava o fumo deitava o fumo pelo nariz. Dizia ele que assim não fazia mal aos pulmões. O Baptista não percebia nada de fisiologia. 
O Baptista tinha dedos amarelos. 
O Baptista tinha dentes de ouro e dentes amarelos. 
O Baptista coleccionava lápis com publicidade. 
O Baptista andava de bata branca desabotoada. 
O Baptista andava sempre com uma cana na mão. Apoiava nela o queixo ou o sovaco à laia de pastor. 
O Baptista via-nos como o seu rebanho e batia-nos com a cana até ela se desfazer. 
O Baptista reparava as canas que se rachavam com rolos de fita gomada. 
O Baptista escolhia os alunos ricos para as carteiras da frente. 
O Baptista sentava os alunos com mais dificuldades nas carteiras do fundo da sala. Os que não aprendiam com facilidade ou que eram pobres tinham as últimas filas. 
O Baptista tinha uma régua com dois dedos de espessura. Massacrava linhas do destino e os nós dos dedos que teimavam em se enrolar com medo da pancada. O Inverno só sabia bem nos ferros gelados das carteiras para sarar as mãos a arder. 
O Baptista tinha um radiador eléctrico, incandescente só para ele. 
O Baptista obrigava-nos a ajoelhar nos degraus do estrado frente ao quadro de ardósia. Batia-nos na nuca com o peso morto das manápulas aneladas. Puxava-nos as orelhas até à cor vermelha do seu rosto colérico e o som da sua fúria ser um zunido. 

Quando houve uma epidemia de cólera o Baptista mandou chamar os pais dos alunos. Os da fila da frente. Os pais que eram médicos. Foi assim que à sorrelfa arranjou vacinas para si, para a mulher que era professora no piso debaixo e para os filhos que eram homens adultos que se tinham safado de ir à guerra. 
O Baptista recebia envelopes que os pais dos alunos mais pobres lhe entregavam em vassalagem: no Natal, na Páscoa e no final do ano. 
O Baptista como um senhor feudal prometia protecção e indulgência. 
O Baptista era um desportista. Lia jornais desportivos e uma vez por ano toda a classe fazia actividade ao ar livre: puxávamos uma corda saltávamos em comprimento e pontapeávamos uma bola no recreio onde no resto do ano era proibido jogar à bola. Excepto a outra classe que tinha recreio a outra hora e era a dos alunos do Sr.Director. 
O Baptista ensinou-nos a falar estrangeiro “love”, “peace”, “kiss me”. Palavras que segundo ele, uma rapariga “meia fraquinha da cabeça meio desavergonhada”, tinha escrito na sua mala e nuns crachás que usava na lapela. 
 O Baptista era um apreciador de arte e falou-nos de Picasso. Dirigiu-se ao quadro fez uma garatuja e sentenciou: -Se fosse o Picasso a fazer estes riscos eles valeriam uma fortuna! 
O Baptista fez-me acreditar que eu era um aluno sofrível. Muitos anos mais tarde ao encontrar os certificados de passagem de classe fiquei admirado 17, 19, 18 (numa escala de máximo 20) e no exame final da 4ª classe tive Bom.

domingo, 12 de outubro de 2008

Folha reencontrada em 2008

Folha perdida em 2006

há sujidade que não se lava

Patrão Nuclear

Folhas a encontrar

Trevo de 4 folhas da minha varanda

HERBERTO HELDER

23 de Novembro de 2006

Há Poetas como muros altos

Abrigados neles

Pequenos inanes

Crescemos e chegamos

Até à altura do horizonte

Vemos o Universo

Primordial como Pedra e Água

Exultante como líquenes e flores

Delicioso como frutos

Fundamental como tubérculos e hortaliças

Há Poetas cuja voz

É uma escada ou um tronco

De Oliveira

Que nos convida a subir

-e antes do tempo, por momentos –

Deixamos a meninice.

Luís Filipe Gomes

Herberto Helder novo livro

Herberto Helder - A Faca não corta o Fogo
Publicado a 10 de Outubro de 2008

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

sábado, 9 de agosto de 2008

O fado da Scarlata

Oh bela Scarlata
Deu-te Deus o condão
E essa Caixa-de-lata
Onde blogas como a prata
E ao povo dás lição
Acordas a consciência
Com a voz do coração
Da pútrida excrescência
O nenufar com excelência
Brota com elevação
Afilhada da Providência
Scarlata está na tua mão
A força que arrebata
Com arte e com ciência
Pois o pinto só pica no chão
O que a galinha esgravata...