quarta-feira, 8 de junho de 2011

O Mancas

  -Estás a trabalhar à chuva porquê? O meu pai a mim não me fez com uma horta nas costas.


Acabei o que estava a fazer e disse para o poltrão ao qual tinha poupado a molha: - Anda daí, está feito. Guarda as tuas costas até chegares ao carro. Isto é, se lá conseguires chegar sem te afogares nem perderes a cor.

Aquela da horta nas costas fez-me lembrar do Mancas.

O pessoal vindo da Beira não trazia uma horta nas costas mas trazia uma horta no olhar, até onde ía a linha do horizonte. No peito guardavam a broa para alimentar a prole, nas épocas de maior escassez era isso que lhes permitia longas horas de trabalho para além do horário normal e do cansaço suportável.

O Mancas era irmão do meu Avô paterno. Todos os irmãos do meu Avô eram muito parecidos entre si, mas o Mancas era particularmente semelhante ao meu Avô, ao ponto de eu confundir um com o outro.

O Mancas tinha uma horta no topo do parque Eduardo VII. Agora está lá um jardim, que por comparação com a meticulosidade geométrica da horta do Mancas não passa de terreno silvestre. As armações feitas com canas para os tomateiros e para os diversos tipos de feijão, a disposição de paliçadas para guardar do vento os alfobres mais elevados do solo onde ele semeava todo tipo de plantas que cobria com palhas secas cortadas ou caruma. Os canteiros de legumes diversos que mudavam conforme as Estações crescendo e ganhando corpo, mudando de cor, florindo e dando semente. Os cantos das ervas medicinais e das hortelãs espaços de ervas para chás de curar todo o tipo de maleitas. Eram uma atracção para mim e para os insectos de todas as cores: joaninhas, borboletas, escaravelhos de cores metálicas e brilhantes, besouros, abelhas e abelhões; além dos pássaros que se aninhavam nas oliveiras e nos arbustos rasteiros que faziam a fronteira da horta.

A última vez que me lembro de o ter visto foi em Lisboa numa antiga taberna na esquina da Rua João Villaret com a Augusto Gil. Escolhia as tabernas pelo fornecimento que tinham. No Zé da Burra era o morangueiro que sabia bem para matar a sede. No Manuel do Asilo um tinto do Cartaxo que se agarrava leitoso às paredes do copo de três. O Carvoeiro tinha um vinho de Almeirim que se podia mastigar e uma malga daquele vinho alimentava como uma malga de sopa. Como ele apreciava o vinho tinto.

Na altura estava muito desdentado e tudo o que comia molhava no vinho. Pedia dois copos de vinho e um pires, bebia metade do primeiro copo de vinho, tirava do bolso a navalhita galega e com ela partia metodicamente em cubos um papo-sêco que lhe sobrara da venda do dia anterior; de um lenço branco que guardava dentro de um saco de pano a um canto da mala dos trocos retirava metade de um pequeno queijo curado de ovelha e cortava-lhe uma fatiazinha depois cortava em gomos uma maçã e ás rodelas uma banana madura quase inteira que tinha comprado no triciclo do vendedor das tecas. O repasto assim partido aos pedacinhos era espetado com a navalhita e molhado no vinho tinto.

1 comentário:

Lilazdavioleta disse...

Bela descrição do Mancas que trazia " Uma horta no olhar " e que possuía
uma bela mão .