HISTÓRIAS DE CARTEIRISTAS
Era já noite fechada e o autocarro levava poucos passageiros; um sujeito de fato escuro e gravata, bem aperaltado, aproximou-se da porta de saída e debruçando-se sobre o único ocupante dos bancos duplos reservados a deficientes, grávidas e acompanhantes de crianças de colo perguntou-lhe:
-Então como correu o dia?
-Fraquinho – respondeu o outro. – E o teu?
O do fato sorriu, endireitou-se, esticou as costas num espreguiçar felino e enquanto premia com o dedo o botão da campainha de pedido de paragem replicou:
-Estava a correr mal, mas depois surgiu uma daquelas oportunidades que não se podem desperdiçar. Ao princípio eu nem queria…
O que estava sentado virou-se no banco e prestou atenção ao do fato.
O do fato ergueu a cabeça, olhou para a vante do autocarro, mediu a distância da avenida iluminada, avaliou a velocidade do autocarro e contou o tempo que lhe restava para terminar a sua narrativa:
- …calhou-me um pai de família com uma menina ao colo carregado com uma pasta e os sacos de compras. Eu só queria ajudá-lo que também tenho filhos; deixe-me ajudá-lo disse-lhe eu, dê cá a menina que eu seguro nela enquanto o senhor desce e pousa os sacos; eu nem queria tás a ver, também tenho filhos, mas o homem abriu-me os braços e ela ali dentro do bolso a olhar para mim e a concha do casaco a pedir-me, vem que eu guardo-te, tás a ver… nã, eu sou pai, também tenho filhos, mas não posso deitar fora as oportunidades né?
O autocarro parou e abriu a porta.
-E tava carregado não? – Perguntou o que estava sentado com medo que o outro ficasse por ali na sua facécia.
O do fato desceu os degraus da porta de saída e já com a porta automática a fechar gritou para o que continuava sentado
-Carregado?! O homem devia ter acabado de receber a taluda.
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