sábado, 26 de outubro de 2013

CROWDFUNDING - PEDITÓRIO



Começavam aos pares e percorriam porta a porta as ruas do bairro e da vizinhança até que no saco de pano houvesse quantia bastante que lhes permitisse parar. Quem não podia contribuir juntava-se à marcha. Nas alturas mais difíceis adivinhava-se a magreza do saco pelo tamanho da romaria. Com o saco traziam o atestado da veracidade da sua causa: a fotografia do beneficiário se a houvesse, um papel assinado, uma conta para pagar, um objecto reconhecível…

Era assim que se encontrava dinheiro para pagar o funeral dos que morriam crianças, dos que na força da vida não tinham tido tempo para o juntar, dos que trabalhando toda a vida nunca tinham conseguido pôr de lado a quantia necessária para o féretro.

Quando a causa não encontrava eco na generosidade dos vizinhos, os mais notáveis do bairro encabeçavam a demanda para que a grandeza da sua humildade persuadisse os mais hesitantes. A Dona Mariquinhas mãe de 12 filhos que ajudara a nascer grande parte da miudagem do bairro; o senhor Almerindo carpinteiro que reparava os telhados que metiam água e construíra todas as barracas que no bairro pareciam casas… gente assim, que tinha mais que fazer quando aparecia era porque além da causa ser piedosa e justa, era também uma afirmação de união e compromisso na sobrevivência da própria comunidade. E então os vizinhos mais desprevenidos chegavam a pedir que outros adiantassem por eles a contribuição, por mínima que fosse, mas que eles não dispunham. Foi assim que a Micas pôde ser operada aos olhos, foi assim que o Cara-Linda conseguiu dar o salto para França na véspera da polícia vir à procura dele para o prender.



Os tempos mudam e veio o tempo em que senhoras bem agasalhadas, de latinha de biscoitos de manteiga pendurada ao pescoço, partiam em missão para além do adro da sua igreja. Desciam às ruas e em praças e mercados que não frequentavam por serem locais que reservavam para as suas serviçais, aventuravam-se no benfazejo acto de aceitar espórtula.



A solidariedade e o altruísmo são características dos mais sábios. Baseiam-se num conhecimento empírico que lhes é transmitido como herança cultural ou deriva de uma iniciação prática a que sobreviveram e não querem ver repetida.

O abuso e usurpação destes valores tão preciosos levaram a que se tornasse banal a resposta:“-Para esse Peditório já dei!”

Mais do que isso, tornaram todos os peditórios uma coisa obscura, um investimento de duvidoso retorno, sem proveito ou obra para o bem comum.

Os tempos em permanente mudança e revolução chegaram aonde estamos. O peditório mascarou-se. Nasceu uma coisa inteiramente nova: O ”Crowdfunding”.
Por isso, às vezes a troco de algo que verdadeiramente não preciso como um alfinete na lapela ou um papelinho autocolante no peito, em vez de dizer "Para esse peditório já dei!", nada digo e a troco de valores que herdei, opto por ficar com um consolo na alma.



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