quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Caldo-verde;


a impossibilidade das coisas simples.

Na Beira Alta migavam as enxundias do porco, colocavam-nas em sertãs de ferro e cozinhavam-nas em lume brando de lenha. A banha ía derretendo e com esse pingue liquefeito pelo calor enchiam olas de barro preto.
O líquido transparente arrefecia e solidificava a sua alvura translúcida no aconchego cerâmico da terra cozida. Com essa pasta branca e macia enchiam o bucho do porco até ficar cheio como um ovo. Àquele balão que era cosido com fio e agulha, dependuravam-no com os restante enchidos em varas horizontais que pousavam nas traves da ampla chaminé que cobria a lareira. Ficava assim o bucho no fumeiro até secar. Após aquela cura e para que a secagem do ar não fosse excessiva ou lhes trouxesse bolores, guardavam aquele fumeiro em talhas que completavam com azeite. Depois os enchidos eram tirados um a um na medida da necessidade.



Para o caldo-verde íam à fonte após o nascer do Sol, que à noite não se recolhe água das fontes para não perturbar os espíritos das águas que também repousam de noite.

Na panela de ferro fundido de três pernas deitavam a água fresca e juntamente com batatas brancas, cebolas picadas e vários dentes de alho, coziam um chouriço. Quando estavam cozidas retiravam do caldo as batatas e os alhos que se deixassem apanhar e introduziam uma mão cheia de feijões debulhados na altura. Esmagavam as batatas cozidas num prato e voltavam a introduzir aquela papa com as couves-galegas apanhadas de fresco.

As couves-galegas eram finamente migadas com a faca corticeira contra a mão cheia de verde aflorando logo acima do abraço em tenaz do indicador com o polegar, o gume da lâmina a desviar-se milimétricamente da pele gretada pela aspereza da verdugem das refeições quotidianas.

O chouriço que perfumara o caldo guardavam-no para acompanhar o prato de grelos de nabo com batatas e cebolas cozidas que comeriam a seguir.

Quando já não havia chouriço ou a panela tivera de ser acrescentada para mais bocas comerem, tiravam uma colher de unto do bucho e juntamente temperavam o caldo com o azeite que escorrera para a malga onde tinham pousado o bucho para o abrirem pelo atilho da linha cosida. Uma colher daquele recheio que era suficiente para temperar um tacho de feijões, fazia maravilhas no sabor do caldo verde.



“-Por que é impossível fazer hoje o costumeiro caldo-verde? O verdadeiro, quero eu dizer!” 
Perguntou um sujeito com a mania das “gourmandises”, a conversa não era comigo; o sujeito não era do tipo de ir à cozinha e eu por meu lado não sou do tipo de comer na sala. Fiquei na distância mas lembrei-me do que agora aqui escrevo e pensei:

Como demoram e dão tanto trabalho as coisas simples que julgamos banais.




5 comentários:

luisa disse...

Que magnífica descrição aqui faz. Toda odores, sabores e tradição. Deliciei-me. :)

Luis Filipe Gomes disse...

Obrigado Luísa.

Beatriz Cunha disse...

És tão talentoso! Escreves e desenhas tão bem e com tanta alma que me deixas muito orgulhosa.

Luis Filipe Gomes disse...

É um sentimento mútuo Beatriz. Bem sabes como tenho admiração por ti!

olhodopombo disse...

não fosse pelo porco, eu adoraria...