sábado, 30 de novembro de 2013

Delirium Tremens





 Á memória das Pessoas do Poeta Fernando Pessoa e dele mesmo.
Delirium Tremens

Acordáste transpirado.
O corpo tiritando de frio. Os pés gelados a doerem tanto que não se conseguem segurar no chão a não ser por um formigueiro doloroso a esboroar a carne em dor até ao osso.
De noite ninguém veio trazer-te a coberta de lã da cama quente.
Pois ninguém podia vir.
Já não há ninguém que possa vir tapar-te na noite fria. Resguardar-te da ansiedade e do desespero gélido. Amparar-te no medo... Se gritares por auxílio é em vão! Gritarás sem que da noite alguém possa vir socorrer-te.
Que pavor não obter mais resposta que esse zumbido fino do silêncio nos ouvidos.
A coberta, essa, era da outra casa, da outra cama quente. Ficou lá e tanta falta fazia agora. Trocaste-a por aquela garrafa de eau-de-vie ...a velha coberta de papa que tanta falta faz! E o cão? ... O cão ferrado na perna a doer a doer, a rasgar a pouca carne. Ainda assim, pouca mas a doer muito, a não poderes fazer sequer um movimento. Que dor! E tanto frio…

Logo logo, abre o carvoeiro às cinco e meia, … e a leitaria às seis. Um branco velho, uma jeropiga, uma malga quente de café com genebra e um cigarro, um mata-bicho qualquer que o bicho tenho-o aqui, tenho-o aqui a ferrar na perna, a bater na cabeça,... a centopeia a marchar, patas e patas de botas cardadas …Bum! Bum! ...Bum! Bum!…Compassadamente, em marcha, o sangue a querer esvair-se, gorgolejando e querendo sair, pelas têmporas, pelas coxas, o formigueiro…

É noite e é Sábado! 
 Quando era pequeno o pai vinha aconchegar a roupa, tirava o braço pisado debaixo do corpo para que não ficásse dormente e acariciava a boca babada, de borco, entreaberta e cerrava-a numa carícia como se fechásse um olhar cego para este mundo e me oferecesse na boca fechada outra vida, na palavra desperta no outro lado do sonho, e me levasse nos braços dormindo e me deixasse a correr livre, com os calções do verão, no jardim como um jockey amarelo num cavalo azul, ou um cão verde…

aqua vi,  aqua vitæ, aqua vitæ
doi-me o abdómen!
 quero urinar, quero urinar, 
tremem-me as mãos, 
todo eu tremo.
… soltem-me as mãos, quebrem-me as amarras 
quem foi que me agarrou a esta cama?
quem foi que me amarrou?
quero urinar
 rebenta-me a bexiga.
Tragam-me um copo de vinho deixem-me por Deus ao menos despedir-me do Vinho
 de toda a terra e de toda a felicidade por vir
dêem-me um Copo de Vinho
 Rebenta-me a bexiga não posso urinar levem-me daqui
doi tanto
 está tanto frio
tirem-me daqui
 libertem-me

 libertem-me...

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