sábado, 30 de novembro de 2013

Poema escrito por Fernando Pessoa, um "Santo Bebedor", a dois anos de distância, no porvir da efeméride da sua morte.





Servo sem dor de um desolado intuito,
De nada creias ou descreias muito.
O mesmo faz que penses ou não penses.
Tudo é irreal, anónimo e fortuito.

Não sejas curioso do amplo mundo.
Ele é menos extenso do que fundo.
E o que não sabes nem saberás nunca
É isso o mais real e o mais profundo.

Troca por vinho o amor que não terás.
O que 'speras perene o 'sperarás.
O que bebes, tu bebes. Olha as rosas.
Morto, que rosas é que cheirarás?

Vendo o tumulto inconsciente em que anda
A humanidade de uma a outra banda,
Não te nasce a vontade de dormir?
Não te cresce o desprezo de quem manda?

Duas vezes no ano, diz quem sabe,
Em Nishapor, onde me o mundo cabe,
Florem as rosas. Sobre mim sepulto
Essa dupla anuidade não cabe!

Traze o vinho, que o vinho, dizem, é
O que alegra a alma e o que, em perfeita fé,
Traz o sangue de um Deus ao corpo e à alma.
Mas, seja como for, bebe e não sê.

Com seus cavalos imperiais calcando
Os campos que o labor 'steve lavrando,
Passa o César de aqui. Mais tarde, morto,
Renasce a erva, nos campos alastrando.

Goza o Sultão de amor em quantidade.
Goza o Vizir amor em qualidade.
Não gozo amor nenhum. Tragam-me vinho
E gozo de ser nada em liberdade.


                                                                                 30 de Novembro de 1933










1 comentário:

Zélia Guardiano disse...

Maravilha ser nada em liberdade...
Lindíssimos versos desse que nos encanta a todos!
Grata por tão importante postagem, amigo Luis Felipe.
Abraço cheio de saudade