quarta-feira, 18 de junho de 2014

O mundo flutuante - Ukiyo.

"Consoante aquilo que flutua, assim flutua emergindo em maior ou menor escala consoante a densidade do seu ser. Assim são as montanha de gêlo e as paredes de pedra. O mar tudo dissolve e afunda em pó e do pó faz a rocha que de novo ergue."


Ukyio é uma expressão japonesa que serve dois conceitos ou seja fonéticamente refere-se a mais do que uma palavra. 
É a maneira como o budismo japonês se refere à realidade aparente em que os seres vivem num ciclo de sofrimento contínuo de morte e reencarnação, poder-se-ía traduzir por O mundo flutuante - O mundo triste e designa a realidade dos sentidos desligada da espiritualidade.
Ukiyo - O mundo flutuante - é também a expressão que  designa uma maneira de estar urbana que durou desde a expulsão dos portugueses no Japão até quase ao final do século XIX, é o chamado Período Edo (1603 - 1868). 
 O mundo flutuante - enquanto expressão japonesa no Ocidente e para os ocidentais tornou-se sinónimo de belas estampas coloridas. As ilustrações feitas por grandes artistas, com grande habilidade e qualidade técnica eram entalhadas em blocos de madeira por mestres gravadores. Havia tantos blocos quantas as diferentes cores da ilustração. Sobre cada bloco entintado depositava-se a folha a imprimir e os mestres impressores tiravam até mais de dez cores em blocos sucessivos. Simplísticamente é como utilizar diferentes carimbos coloridos para criar uma ilustração complexa em que rigorosamente uma côr pára na linha de fronteira onde começa outra, ou se sobrepõe para criar outra côr nova.
Verdadeiramente O mundo flutuante designa também uma espécie de limbo espiritual, uma falta de propósito fundamental, um marasmo egoísta, uma apatia, mas que paradoxalmente influenciou as artes que viriam a estar na base da ideia contemporânea do séc. XX.
O dinheiro gerado pelas trocas comerciais iniciadas com os portugueses a partir de 1543 possibilitaram o desenvolvimento de uma classe de "mercadores" abastados que passaram a viver desafogadamente, mas aos quais o acesso ao poder estava vedado devido às restrições da organização social japonesa. Durante este período deu-se o apaziguamento do Japão. A sociedade feudal que se organizava na guerra entre senhores entrou em declínio talvez devido à introdução de armas de fogo pelos portugueses  e da execução de novas tácticas de combate. A guerra mudou e o Japão dividido tornou-se uma nação única em 1603. Os portugueses pagaram a sua ambição. Com a ajuda dos nossos vizinhos espanhóis que cá governavam na altura, a expansão política e o proselitismo religioso de Jesuítas e Dominicanos custou aos portugueses a expulsão do Japão. Muitos portugueses e japoneses cristãos pagaram com a vida: queimados vivos em fogueiras e cozidos em caldeirões de água a ferver, torturados até à morte;as atrocidades foram muitas de parte a parte. A derradeira tentativa de restabelecimento de relações comerciais foi em 1647,  já com D. João IV. Esta última tentativa de relacionamento com o Japão foi fracassada. Ficaram cidades francas e portos comerciais onde as trocas com Holandeses, se continuaram a fazer.

Katsushika Hokusai colecção de estampas japonesas de Picasso
Ora esta gente comercial japonesa começou a patrocinar o entretenimento para mitigar o tédio e a insatisfação, aplacar este desejo de mais alguma coisa. Apetecia-lhes algo mas não sabiam o quê. Esse desconsolo foi canalizado para o hedonismo de um Mundo Flutuante entre lutas de Sumô e Gueishas deslumbrantes, entre requintados repastos e alegorias teatrais, entre requintados assomos nostálgicos da vida no campo e na natureza  até recolhimentos ascéticos entre samurais sem guerras para travar. Mundo Triste é certo diriam monges xintoístas esperando pela construção de mais mosteiros para fidelizar novas vontades agora livres do assédio da ideia do Espírito Santo. 
Neste mundo de comunicação e faz de conta as estampas da vida quotidiana tornaram-se comuns, fosse para anunciar as peças de teatro Kabuki, fôsse para anunciar a beleza de uma gueisha tocadora de shamisen, ou simplesmente para mostrar aos urbanos a rusticidade da vida dos camponeses. Muitas destas estampas quando caíam fora de moda eram usadas como papel de enchimento nos "shoji", paineis de papel de arroz translúcidos ou não, que à semelhança do nosso tabique faziam a separação de espaços numa habitação. Posteriormente muitos destes papeis dos shoji serviam de protecção ao embalamento de todo o tipo de mercadoria desde peças de cerâmica a caixas de chá. Estas estampas são depois descobertas e recuperadas nomeadamente em França pelos impressionistas que se deslumbram com o exotismo dos motivos, com a exuberância da côr e com a qualidade da impressão.



Tudo isto a propósito do texto em epígrafe dos "dragon's teeth" e de como um deles pode ser a metáfora para O MUNDO FLUTUANTE em que vivemos.









3 comentários:

Lilazdavioleta disse...

Interessante .
Ontem andei às voltas deste assunto mundo flutuante , levada por umas gravuras que gosto .

E como estou de acordo com o paralelismo que fazes .

Luis Filipe Gomes disse...

Muitas vezes comento com outras pessoas que vivemos num mundo flutuante. Depois lembro-me sempre de Hiroshige Hando, de Utamaro...mas também das gravuras shunga.

Esta palavrinha passou para o português e deu origem a chunga e chungoso, por via popular claro.

Luis Filipe Gomes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.