domingo, 14 de setembro de 2014

Arthur Bispo do Rosário texto de Luciana Hidalgo.



Luciana Hidalgo
Arthur Bispo do Rosário perambulou numa delicada região entre a realidade e o delírio, a vida e a arte. No refúgio de sua cela no Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, o paciente psiquiátrico produziu mais de mil obras consagradas no mercado internacional de arte contemporânea. Criou um universo lúdico de bordados, assemblages, estandartes e objetos durante os mais obscuros períodos da psiquiatria – época dos eletrochoques, lobotomias e tratamentos violentos aplicados para o controle de crises. Sem se dar conta, Bispo não só driblou os mecanismos de poder no manicômio como utilizou sobras de materiais dispensados no hospital para criar suas obras, inventando um mundo paralelo, feito para Deus.
Dizia-se um escolhido do todo-poderoso, encarregado de reproduzir o mundo em miniaturas. Eram suas “representações”, afirmava. Paradoxalmente, as obras, que deveriam representar tudo o que havia na Terra acabariam reconhecidas como peças de vanguarda, incluídas por críticos em importantes movimentos artísticos. Sua arte genial chegou a representar o Brasil na prestigiada Bienal de Veneza, além de correr museus pelo mundo, a exemplo do Jeu de Paume, em Paris. Curiosamente, em vida, Bispo recusava o rótulo de “artista”, dado o caráter divino de sua tarefa. Mas a potência de sua obra ignora limites e até hoje atravessa fronteiras, transgredindo convenções e levando espectadores de todo o mundo ao encantamento.

A história da “loucura” de Bispo remonta à noite de 22 de dezembro de 1938, quando, aos 29 anos, conduzido por um imaginário exército de anjos, andou pelas ruas do Rio com um destino certo: ia se “apresentar” na igreja da Candelária, no centro. Peregrinou pelas várias igrejas enfileiradas na rua Primeiro de Março e terminou no Mosteiro de São Bento, onde anunciou a uma confraria de padres que era um enviado, incumbido de “julgar os vivos e os mortos”. Detalhes dessa narrativa, meio real meio ficcional, constam de um estandarte bordado por Bispo, uma das belas peças de sua vasta obra, que mistura autobiografia e autoficção. É nesse estandarte que Bispo registra a frase-síntese de sua vida e obra Eu preciso destas palavras – Escrita. A palavra tinha para ele status extraordinário, por isso seus bordados estão repletos de nomes de pessoas, trechos poéticos, mensagens.

O dia 24 de dezembro de 1938 foi um divisor de águas psíquico para Bispo. Era Natal, ele se convertia na figura de Jesus Cristo, mas acabaria sob o domínio da psiquiatria. Interditado pela polícia dois dias após a sua “anunciação”, foi enviado ao Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, onde rótulos não tardariam a marcar sua ficha: negro, sem documentos, indigente.



Após algumas semanas de internação, com o diagnóstico de esquizofrênico- paranóico e sem que ninguém o reclamasse, Bispo foi transferido para a Colônia Juliano Moreira, hospício na época considerado “fim de linha”. Foi alojado no pavilhão 11 do núcleo Ulisses Viana em janeiro de 1939, um engradado destinado a doentes “perigosos”. As celas abrigavam apenas um fino colchão e, ao lado, um buraco no solo com fezes à mostra e insetos em volta.

Bispo era um dos “agitados”, na terminologia dos funcionários da Colônia. Chegou agressivo, passou um tempo preso, mas logo aprenderia a se virar. Ele havia prestado serviços à Marinha, dos 15 aos 23 anos, na função de sinaleiro-chefe. Como entre os esportes ali estimulados estava o boxe, Bispo se entregou de corpo e alma ao pugilismo. Por isto, guardas e enfermeiros logo viram nele um aliado. Forte e sisudo, o ex-boxeador rapidamente se tornou “xerife” do pavilhão. Criou um estilo próprio para deter os mais rebeldes: enrolava na mão um pano molhado entrelaçado nos dedos, como um soco inglês improvisado. O exercício do poder de xerife asseguroulhe posição privilegiada na hierarquia da instituição e lhe permitiu recusar eletrochoques e medicações.

Acostumado a conter pacientes à sua volta, Bispo conquistou a confianca de funcionários – e pouco a pouco aprendeu também a se conter. Quando os sinais da sua “transformação” se apresentavam, era inútil combatê-los. Ele pedia para um enfermeiro de sua confiança trancafiá-lo, passando o cadeado pelo lado de fora da cela. E ali permanecia, às vezes por meses seguidos. Não aceitava refeições, passava fome: “Vou secar pra virar santo”, prometia.

Foi nessas fases de isolamento que a arte mais brotou. Na falta de material, Bispo desfiava o próprio uniforme azul do manicômio. Desfazia a veste e aproveitava fio por fio. Assim começou a cerzir o Manto da apresentação, espécie de mortalha sagrada que bordaria durante toda a vida para vestir no dia do Juízo Final, na data da sua “passagem”. Bordados no manto estão os nomes das pessoas que ele julgava merecedoras de subir aos céus – mulheres, em sua esmagadora maioria. O pano de fundo é um cobertor avermelhado do hospício, onde inscreveu minúsculos registros, “representações” dos mais variados objetos: tabuleiro de xadrez, dado, mesa de sinuca, avião, números, palavras e muito mais. Ele utilizou a mesma técnica de bordados nos estandartes: lençóis e cobertores da Colônia bordados à mão com as linhas dos uniformes. Não à toa o azul se destaca nesses panos estampados com navios, bandeiras e palavras, sempre palavras.



NOS BRAÇOS DA VIRGEM
 
Bispo costumava apagar o seu passado, dizendo apenas: “Um dia eu simplesmente apareci”. Mantinha o mistério sobre sua cidade natal, apesar de os dados biográficos desvelarem a verdade. Nascido em Japaratuba, Sergipe, ele contava a história do seu “aparecimento” no mundo pelos braços da Virgem Maria, a quem chamava de mãe. O pai era São José e ele, Jesus Cristo. Mas nem toda a ficção acerca de sua genealogia apagou o registro de batismo na igreja matriz de Nossa Senhora da Saúde, na praça central de Japaratuba. Lá se encontra a prova de que Arthur Bispo do Rosário foi batizado no dia 5 de outubro de 1909, aos três meses.

Ao se situar à margem do cotidiano do hospício, numa época em que a psiquiatria transformava os manicômios em campos de experimentações, ele se ilhava numa cela e se esforçava para construir um outro mundo. E nesse universo era rei. Sobre a sua própria situação e a de seus colegas, tinha opiniões muito particulares: “O louco é um homem vivo guiado por um morto”, dizia. Ou: “Os doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do chão”.

Funcionários e pacientes nem sempre compreendiam as motivações religiosas de Bispo, mas passariam a levar para ele todo tipo de sucata, em troca de objetos do escambo local. Qualquer elemento da rotina manicomial ganhava um sentido sob sua lógica. Eram objetos de plástico, aço, ferro e outros materiais, reunidos conforme o senso plástico de Bispo.

Nos primeiros tempos, num dos intervalos das “transformações”, ele voltou algumas vezes ao casarão da rua São Clemente, em Botafogo, onde a família Leoni mantinha o seu quarto. Bispo conheceu os patrões após um acidente de trabalho na Viação Excelsior, onde prestava serviço como borracheiro, após deixar a Marinha. Humberto Leoni foi o advogado encarregado de uma ação trabalhista a seu favor contra a empresa. Bispo ganhou a causa e um emprego: virou o faz tudo da família e ali morou, até ser arrastado pelas hordas de anjos e encaminhado para o hospício. Em troca de comida e moradia, fazia pequenos serviços domésticos, mas não aceitava pagamento.



Nos anos 60, Bispo voltou de vez à Colônia. Passaria as décadas seguintes preparando-se para a “passagem”. Incansável, garimpava cabos de vassoura, ripas de madeira e badulaques para construir carrinhos, objetos diversos, variações sobre um tema: a Marinha. Produziu uma sequência de embarcações de madeira com mastros, escadas, arrastões, boias, botes salva-vidas e bandeirolas.
Reciclava refugos e produzia. Juntava, por exemplo, os tênis Conga usados pelos pacientes num compensado de madeira. Ou galochas, colheres, as canecas de alumínio do refeitório. Chegou mesmo a compor uma assemblage que reúne ícones do candomblé. Não sabia que tudo isto tinha nome e classificação no mercado de arte. Signos manicomiais ganhavam novo sentido e valor estético nessa ousada desconstrução do poder no hospício.

Nos Estados Unidos, artistas se rebelavam contra os excessos da sociedade de consumo, transformando em símbolo da pop art a latinha de sopa Campbell, por exemplo. Com intenção distinta, Bispo criava em Jacarepaguá assemblages com embalagens de desodorante, detergente, amaciante e cerveja. E dedicava uma obra somente aos sabonetes: uma merendeira e vários potes de plástico abrigam rótulos de Palmolive, Cinta Azul, Gessy, Lux. O fosso a separar Arthur Bispo do Rosário do artista americano Andy Warhol, porém, era tão fundo quanto o inconsciente coletivo que os circundava. Guiado por tutores nebulosos, o sergipano mantinha uma antena apontada para a estética mundial.



MOÇAS BONITAS
Bispo lia jornais e revistas para acompanhar os fait divers. Tinha uma especial predileção pelas fotos das jovens de pernas bem torneadas, cinturas espremidas em espartilhos e olhares ao longe. Eram as misses – e suas imagens de moças castas e belas – suas favoritas. Os concursos chegavam até ele pelas publicações. A Miss Universo de 1963, Ieda Maria Vargas, era a mais admirada por ele, afinal, era a mulher mais bonita do mundo. Por isto, uma série de obras – faixas e cetros – foi dedicada às rainhas da beleza dos mais gloriosos e dos mais sofridos países do planeta. Bispo também bordou o mapa da Colônia com seus pavilhões, pacientes, funcionários. Fez um detalhado levantamento emocional, histórico e topográfico do hospício carioca numa espécie de planta baixa do asilo que o acolheu durante 50 anos (não consecutivos). Nesse estandarte estão o temido Egas Muniz (o pavilhão das lobotomias), o Bloco Médico, a casa do diretor, os rios, o posto do Exército e até os ônibus que levavam amigos e parentes de pacientes em dias de visita.

Em 1982 o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro expôs alguns exemplares do universo de Bispo numa coletiva reunindo presidiários, menores infratores e idosos, intitulada À margem da vida. A princípio ele não quis participar, mas depois cedeu algumas obras. Na época, o crítico de arte Frederico Morais ofereceu-lhe uma sala inteira para exposição no MAM, onde Bispo poderia se espalhar e se alojar por um tempo. Ele sequer pensou no assunto. Morreu na solidão de sua cela, em 1989, sem ver seu império classificado como obra de arte, percorrendo o mundo. Mas, aos olhos da crítica e do público, era já um artista.





1909 – NASCE EM JAPARATUBA, SERGIPE. É BATIZADO EM 5 DE OUTUBRO DE 1909, AOS TRÊS MESES DE IDADE, NA IGREJA MATRIZ DE NOSSA SENHORA DA SAÚDE.

1925 A 1933 – TORNA-SE MARINHEIRO, CUMPRINDO, AO LONGO DOS ANOS, A FUNÇÃO DE SINALEIRO-CHEFE.

1933 A 1937 – TRABALHA COMO BORRACHEIRO NA VIAÇÃO EXCELSIOR, SUBSIDIÁRIA DA LIGHT.

1937 – CONHECE O ADVOGADO HUMBERTO LEONI, QUE O DEFENDE NUMA CAUSA TRABALHISTA E DEPOIS O EMPREGA EM SUA CASA, PARA SERVIÇOS DOMÉSTICOS.

1938 – É INTERNADO NO HOSPITAL NACIONAL DOS ALIENADOS, NO RIO.

1939 – É TRANSFERIDO PARA A COLÔNIA JULIANO MOREIRA, NO RIO, ONDE PERMANECE DURANTE 50 ANOS NÃO CONSECUTIVOS.

1982 – O FOTÓGRAFO E PSICANALISTA HUGO DENIZART REALIZA O DOCUMENTÁRIO O PRISIONEIRO DA PASSAGEM, COM BISPO. O CRÍTICO DE ARTE FREDERICO MORAIS INCLUI ALGUMAS DE SUAS OBRAS NA COLETIVA “À MARGEM DA VIDA”, NO MAM-RJ.

1989 – MORRE NO DIA 5 DE JULHO, VÍTIMA DE ENFARTE. EM 18 DE OUTUBRO, FREDERICO MORAIS INAUGURA SUA PRIMEIRA MOSTRA INDIVIDUAL, “REGISTROS DE MINHA PASSAGEM PELA TERRA”, LEVANDO 8 MIL PESSOAS À ESCOLA DE ARTES VISUAIS DO PARQUE LAGE. A PARTIR DAÍ, SUAS OBRAS SÃO EXPOSTAS EM VÁRIOS ESTADOS DO BRASIL E EM PAÍSES COMO SUÉCIA, FRANÇA E ESTADOS UNIDOS, ENTRE OUTROS. EM 1995, REPRESENTA OFICIALMENTE O BRASIL NA PRESTIGIOSA BIENAL DE VENEZA, NA ITÁLIA.

4 comentários:

luisa disse...

Interessante.

Lilazdavioleta disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lilazdavioleta disse...

Perante estes seres extraordinários ,pergunto-me se a sua aparição não servirá para nos levar a questionar . . . o que é isso da loucura ?

Luis Filipe Gomes disse...

A loucura ou sanidade é uma forma de sensibilidade perante as questões que colocamos a nós próprios sobre a normalidade e a bizarria do ser.
Que coisas podemos fazer em público, na privacidade e na intimidade? Que coisas podemos exprimir e como podemos exprimir desejos conscientes que fogem à nossa própria vontade, à bitola normalizadora do que é aceitável e não prejudicial? De que maneira podemos lidar com a realidade incólumes, ou pelo menos sem que a agressão da realidade nos impeça de viver?
Sim! Afinal o que é isso da Loucura?