terça-feira, 2 de junho de 2015

Só à cana.



O segundo período tinha terminado e toda a classe encarava aliviada o último período por saber que seria menos fustigada pelo Batista. Com efeito nas derradeiras semanas do período anterior a cana em que Batista, o professor que gostava de bater, se apoiava à maneira de um pastor se apoiar num cajado tinha sido destruída. Ele que dizia usar a cana como ponteiro, mas que de facto a utilizava ora como vergasta, ora como vara de picar bêstas, despedaçou-a até ela abrir em tiras. Tiras que ele tentava reparar passando-lhes fita-cola, mas sem sucesso pois as pancadas que o Batista ía desferindo nas nossas cabeças, nos nós dos dedos, ou onde nos apanhasse, rebentavam a fita-cola e a cana abria de novo até parecer um azorrague que mesmo assim ele usou até tudo se despedaçar. 

 
Debalde nossa esperança! O Freitas trouxe uma cana nova para o Batista.
 -Mas porquê? - Perguntávamos uns aos outros- será que ele é parvo? – Parecia que ele era parvo! Logo no intervalo da manhã assim que fomos para o recreio o Abílio que era forte agarrou o Freitas pelos colarinhos do bibe contra a parede do corredor invectivando-o indignado:
- Ó Freitas, tu és parvo ou quê? Então tu trouxeste-lhe uma cana para nos bater? E ainda por cima uma Cana-da-Índia das que nunca mais partem?
-E fiz muito bem – respondeu-lhe o Freitas de Peniche- Assim o Senhor Professor já não me bate, a mim, com a cana, porque fui eu que lha trouxe!
O Freitas de Peniche tinha passado para o outro lado. Tinha deixado de ser criança e tinha deixado de ser um de nós.
 Acabado o recreio assim que fomos para a aula o Batista chama o Freitas de Peniche ao estrado; tinha que cantar os principais rios de Angola: Onde nasciam, por onde passavam, onde desaguavam. Desastre total; o Freitas de Peniche bem olhava para o mapa de Angola mas àquela distância até as letras gordas de ANGOLA não passavam de minúsculas letrinhas.
A primeira canada veio direita ao pescoço deixando boquiaberto o Batista pela eficácia com que a sua nova arma tinha feito um vergão indisfarçável e boquiaberto também o Freitas de Peniche, incrédulo pela ingratidão com que o Senhor Professor, seu mestre, recompensava o gesto galante por quela prenda de sonho. Afinal desde o início do ano escolar que o Senhor Professor sonhava encontrar uma cana-da-Índia.
O Freitas passou a ser o Só à Cana; o nosso sacana.

2 comentários:

Maria Eu disse...

Era curioso, esse hábito que os alunos tinham de fornecer a cana ao professor. Coisas que só uma deficiente educação pode explicar.

Beijo, Luís. :)

Luis Filipe Gomes disse...

Nesse tempo a corrupção era entranhada na mentalidade dos mais humildes. Por mais pobres que fossem os pais, no início dos períodos lectivos e no fim, entregavam um envelope ao senhor professor para que ele "puxásse" pelos filhos e como a sua insegurança era muita e a sua capacidade de auxílio educativo era pouca, diziam coisas do género: "o senhor professor castigue-o!"; "o senhor professor bata-lhe à vontade, só se perdem as que caem no chão!"

Beijos Maria Eu!