sábado, 30 de abril de 2016

As trombetas.


Passámos aquela fase de inscrever façanhas num livro pateta de registos: O mais comprido o mais pesado, o mais numeroso, o que leva mais ovos, o que...
Agora subiram de esparrela e toda a coisa quer ser património da humanidade ou pelo menos património imaterial da humanidade. Comidos os bolos, aos tolos ideias para candidaturas parvas não faltam. 
Nesta terra superlativa à beira-mar em que o peixe é o melhor do mundo, existe a mais bela praia e a maior onda, a ponte mais bonita e a mais comprida, o melhor queijo e o melhor presunto; o melhor azeite e o melhor folar; a melhor morcela e a melhor linguiça... tudo, tudo, regado com o melhor vinho, melhor vinho do mundo é claro... Fica aquele picozinho a azedo do "rio que corre pela minha aldeia" que o Fernando António Nogueira dos tintos e dos cheios bolsou genialmente pela boca do Alberto.


 Perguntava no outro dia um neoliberal assumido num jornaleco que se diz observador porque é que o vinho português muito bom e muito barato é tão difícil de encontrar à venda na Escandinávia de onde esse neoliberal é originário. Lembrei-me de um personagem alarve de um filme de entretenimento que perguntava porque é que os chocolates de nomeada são da Suíça ou da Bélgica e nunca dos países onde o cacau e o açúcar são produzidos. Fiquei a pensar que é por causa das trombetas. Sim! Por causa das trombetas, das trombetas e dos exércitos que elas anunciam. O som das trombetas tem aquele encanto épico, o som cavo das mais graves é avassalador e revolve as entranhas como a pancada mais violenta no tambor surdo. Sem trombetas os pergaminhos de nada servem, a multidão não acorre nem se impressiona se não houver trombetas. Vivemos na era do mercado global, nunca como agora as trombetas e os megafones foram tão importantes.


 

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Voto Ex Voto


Bólide turbo.

Como diz que disse? Vólide turvo? 

 Por vezes chego e arrumo o carro num espaço de estacionamento tão curto que o atravancamento me deixa de sobra quatro dedos do para-choques da frente para o carro seguinte e quatro dedos da rectaguarda para o carro anterior. Outras vezes tenho espaço que quase sobra para outro carro e não consigo estacionar. O carro parece ter o tamanho de um camião de dezassete metros.
É aí que percebo que a percepção é tudo e quanto o cansaço da última noite de turno a pode afectar.

domingo, 24 de abril de 2016

Mas o que é a Arte?



Mas o que é Arte, o que é Arte para mim?
A Arte é equívoco! Por isso alguns vêem arte onde outros só vêem escombros e lixo.  Boa parte da Arte não foi criada com o objectivo de ser considerada Arte. De ser Arte como a consideramos hoje e os nossos sentidos a reconhecem nos museus e nos locais onde vamos para a encontrar.
 
A "arte rupestre" ao ar livre como a que existe no vale do Rio Côa serviu para objectivo desconhecido. Parecem ser imagens para ver de perto. Muitas das gravuras mimetizam-se com a rocha onde foram feitas e apenas são visíveis a curta distância a menos que alguém preencha o sulco com alguma pasta colorida. 
Não é uma "arte portátil" como uma jóia de um clã nómada ou uma tatuagem. Mas tal como na execução de joalharia a sua concretização necessitou de um especialista com conhecimentos vários e utensílios adequados que fossem ferramenta específica para a realização efectiva.

Esta é uma das características da arte, precisa de um artífice, um especialista que solitáriamente ou em grupo pratique determinadas técnicas que materializem alguma coisa que vá para além da própria comunidade onde foram criadas.

Outra característica que a Arte parece ter é do seu resultado ser tão duradouro quanto possível, de forma a que haja tempo para que ele possa ser reconhecido como Arte. Duradouro de tal maneira que a sua destruição seja mais dispendiosa que a sua manutenção. 
É claro que a durabilidade depende mais da protecção e do cuidado de preservação prestado à obra de arte do que da resistência física do material. As grandes destruições de objectos e construções aos quais se atribuía importância artística foram feitas pela actividade humana e não por cataclismos. Por muito que sejam duradouras a perenidade das obras de arte é sempre efémera e não me refiro a obras mais fugazes ligadas às artes cénicas. Curiosamente o próprio registo do tempo, a celebração e a efeméride, parecem ser o motivo e a razão da arte que sobrevive. Paradoxalmente, pode-se afirmar mesmo que é à revelia da vontade humana que as obras de arte mais longevas hoje se encontram entre nós. A sua preservação acidental sobreviveu a credos, culturas e civilizações. Este testemunho físico que sobrevive à memória, pela perplexidade que desencadeia já é em si uma legitimação para aquilo que se entende por Arte.
Nesse sentido a Arte é identificação e afirmação. Afirmação pela existência e resistência ao tempo. Mas sobretudo pela empatia que pode criar no observador, pela capacidade de parar o acto destruidor do iconoclasta ao transformar a sua motivação destruidora em preservação.

No caso das tatuagens, além do aspecto decorativo, a motivação subjacente para a sua incisão parece ser maioritáriamente a de identificação com um ideal e a preservação de uma memória. Memória traumática ou relevante, através de uma marca indelével, uma ferida ritual feita com sofrimento físico na altura da própria gravação. Simbólicamente um sofrimento sacrificial que pode invocar: a sobrevivência aos combates numa batalha, a sobrevivência a uma guerra; a libertação do encarceramento numa prisão, a superação de uma doença grave; a celebração de um amor, o nascimento de uma criança, a aspiração a uma atitude perante a existência. A tatuagem é uma insígnia. Uma forma de notoriedade do indivíduo perante a comunidade. A tatuagem é o derradeiro testemunho, a afirmação última que a pessoa tatuada pode ainda exibir perante o despojamento total de meios e capacidades físicas. A tatuagem ainda fala pelo indivíduo quando o seu corpo doente ou dilacerado já não tem vida. Mas também aqui, no caso de ser a tatuagem considerada Arte, a sua perenidade é aparente e limitada pela durabilidade do suporte.

Ötzi assim chamaram ao corpo tatuado de um ser humano que viveu há 5300 anos, mumificado e conservado pelo gêlo até 1991 numa região montanhosa dos Alpes. As tatuagens que exibe são Arte? Simples traços semelhantes a um código de barras, são Arte? Acredito que são prática de alguma arte sim! Provam a existência de uma mão tatuadora, rigorosa na colocação das marcas em pontos específicos reconhecidos na prática da acupunctura. Nesse caso a sua gravação mais do que um valor simbólico, tinha um propósito prático, permitiria ao próprio ou a outros não especialistas, encontrarem os pontos exactos para alívio do sofrimento.
Esta também parecem ser características da Arte, a utilidade prática e o alívio do sofrimento. Uma terapia para o próprio autor e para aqueles que a usufruem. Atrevo-me a dizer que assim é mesmo quando ocorre o efeito placebo.



Resumir uma narrativa, numa imagem, exige uma capacidade de síntese tão apurada quanto a que leva à criação de um signo. Uma seta é um signo tão vulgar que a sua banalização tornou o seu significado  de interpretação fácil e intuitiva. A sua criação porém precisou de artífice. Precisou de mão de artista, ou de colectivo de artistas, que tivesse a perícia de criar do nada o que antes não existia, e necessitou que apesar da subjectividade da apreciação do observador, da sua experiência e da sua vivência se estabelecesse comunicação. Como se alguma coisa viva ali estivesse e a humanidade se pudesse recriar e reconhecer nesse relacionamento. Uma seta permanece e substitui quem transporta a mensagem muito tempo para além desse alguém ter passado. Uma seta concretiza a comunicação usando uma linguagem inteligível num tempo futuro para um observador desconhecido. 
Mas da mesma maneira que uma seta é um signo subjectivo que pode ser interpretado de diversas maneiras: tanto pode ser um objecto que permanece ou alguma coisa que se desloca; uma arma ou a parte da arma que dispara; um percurso ou o sentido do movimento no caminho; o objectivo a atingir ou o ponto de partida, a Arte só dá a resposta a quem consegue fazer perguntas.
A arte é o que quer que seja que o ser humano artista consiga transcender do seu íntimo no sentido de o tornar comunicação.

Hoje ainda não sabemos, pelo menos eu não sei, o que é a "arte parietal" do vale do Côa. Julgamos saber que é uma arte de representação, nela se representam animais. Se tinha uma finalidade descritiva dos mesmos, dos locais em que apareciam ou do tempo em que estavam presentes? Não sabemos. 
Se é um calendário ou um mapa estelar? Se é um bestiário ou um fabulário de caçadores? Se integrava rituais iniciáticos, ou se tinha objectivos religiosos? Não sabemos! 
Não sabemos se foi uma manifestação contemplativa ou uma delimitação territorial. Não sabemos se é uma ameaça ou um sinal de acolhimento.
Sabemos! Sabe qualquer um de nós, que riscar numa pedra é uma forma  durável de deixar a mensagem para outra pessoa que não está presente e que não sabemos quando virá. 
Gravar uma pedra é dizer que estivemos presentes e que temos esperança que outros saibam disso. Por isso gastámos tempo e fizémos esforço. A acção foi mais compensadora que a inactividade. Quando o fazer, a criação se torna um imperativo, podemos chamar a isso necessidade de expressão. A Arte é necessidade de expressão.

Pastores ao longo dos séculos riscaram pedras. Com pedras juntaram montículos e ergueram muros. São maneiras de combater o tédio, estratégias tão válidas quanto um sistema filosófico. As pedras permanecem bem mais do que as pessoas que as amontoaram e delas fica a afirmação física; dos sistemas filosóficos nada resta que se possa exibir. E no entanto essa realização mental pode ser transmitida a outros sucessivamente, como se transmite uma localização de uma nascente, ou uma cerca de pedras onde tomar abrigo.




A Arte é assim, um sistema mental, um mapa imaterial de conhecimento e de sobrevivência.
Por isso a Arte é um equívoco. 
Para uns será pouco importante e passará despercebida como a sede passa despercebida para quem vive rodeado de nascentes de água limpa.
Para outros será a Arte o apoio onde firmarão a sua alavanca e nela encontrarão a tenacidade e o ânimo indispensável para vencer a penosidade das suas vidas. 
Parece-me que a Arte a todos proporcionará a inquietação e a harmonia a que chamamos felicidade. Tal motivo é suficiente para que exista e a pratiquemos sem dar por isso quando assobiamos a uma ave, quando cantarolamos uma melodia a uma criança de colo, quando com um estilete gravamos um vaso cerâmico ainda cru, quando alinhamos as plantas numa horta, quando preparamos um espaço para acolher alguém.
A Arte para nada serve e no entanto como poderíamos sobreviver se dela fôssemos privados. 











sábado, 9 de abril de 2016

"amtssprache" - Verdadeiramente não há maus desenhos. Mas podem haver temas fáceis e temas difíceis.

Os desenhos são sempre a imagem do desenhador. -Não pensem em auto-retratos mesmo que o desenho seja um auto-retrato.- Talvez seja melhor dizer que os desenhos são sempre belos independentemente de serem ou não figurativos; de neles se poderem identificar seres e objectos, ou só geometria. 
Os desenhos são a sombra que a alma projecta porque a alma não tem forma conhecida e sendo luz e energia não se materializa a não ser na ideia que agora dela aqui invoco e essa é sua única sombra e esplendor.

 "amtssprache" - A palavra refere-se a um tipo de linguagem institucional.  Poder-se-ía traduzir a palavra por oficialês no sentido de que é uma linguagem oficial que retira qualquer responsabilidade ao sujeito que vive dentro da realidade que essa linguagem implica. São frases comuns desta linguagem "Estou a cumprir ordens!" ; "Faço aquilo que a Lei obriga!"; "Eu sou um simples funcionário!" ; "Não é a mim que cabe decidir!"; "É este o meu trabalho!".
Esta linguagem foi referida por Adolf Eichmann para explicar como foi possível o homicídio de milhões de pessoas durante o governo do III Reich alemão, em contextos não militares ou de guerra, chacinando populações civis inteiras de vilas e cidades; mas também em processos industriais de execução e destruição dos cadáveres como foi o caso do extermínio nos campos de concentração nazis. 
Esta linguagem utiliza também eufemismos, metáforas e outras figuras de estilo para a desumanização das suas vítimas. Por exemplo os seres humanos submetidos a experiências atrozes pelos médicos e cientistas japoneses durante a Segunda Guerra Mundial eram designados por estes cruéis carrascos como "troncos".

terça-feira, 5 de abril de 2016

Corpo Renascido. Francisco Fanhais cantando Manuel Alegre com música de Pedro Lobo Antunes.



Corpo Renascido
Canção.
Toco-te e respiras
Sangue do meu sangue.

Cantando é como se dissesse:
Estou aqui.
Cantando eu nego o que me nega
Acto de amor
Coração perpendicular ao tempo.

Cantando é como se dissesse:
Estou aqui.
Na multidão que está dentro de mim.
Recuso a morte cantando
Recuso a solidão.

Canção casa de mundo
Viagem do homem para o homem
Meu pedaço de pão rosa de Maio
Criança a rir na madrugada.