domingo, 18 de junho de 2017

Memória de combate a um fogo.



Quando o lume vem, há um rugido no ar: O estalar dos lenhos, o silvo das labaredas, o colapsar das ramadas, o ferver das seivas… O grito lancinante de toda a natureza parece um interminável trovão. Ainda longe sente-se o calor; àquele troar intenso acresce o ar denso e quente, há dificuldade em encher o peito de ar e um frenesim apodera-se do corpo e impele a fuga. Depois os olhos secam e semicerram-se com dificuldade. O fumo sufoca e perde-se a dimensão das coisas. Perde-se a noção de distância e orientação. Não há cor e tudo parece sanguíneo e cinzento. Tudo é ardor e brasa a garganta queima, os pulmões doem, os olhos choram, a língua sêca arranha os lábios. Grita-se pelos companheiros à direita e à esquerda, respondem sucessivamente um e outro e outro, estendemos as mãos para nos tocarmos. Olha-se para o alto, mas não se vê o céu, os turbilhões negros enrolam o ar num vendaval que dificulta estar erguido e caminhar. Uma dor intensa na omoplata como um ferrete e novamente e outra vez… Abel vê se tenho as costas arder? – Não, nada! Tinhas umas vespas pousadas mas já foram. Passam por nós perdizes, coelhos, seres rápidos impossíveis de identificar. Gritam longe: Todos para trás, já chega! Já chega! P’ra trás! P’ra trás!

Recuámos dos 30 passos de campo rapado roçando ainda giestas aqui e ali, ceifando estevas, o corpo febril ensopado em suór. As labaredas estacam, saltam faúlhas e tições, sachamo-las, atiramos-lhe terra. As línguas vivas de fogo sobem a encosta e passam ao lado das casas da aldeia. O Povo está salvo.

2 comentários:

Justine disse...

Texto impressionante, o país ainda em choque, o mundo a atirar para trás das costas - ou a chutar para a frente - os problemas ambientais...
Aqui chegaram as cinzas e o cheiro, a 70Kms da tragédia.
As palavras estão gastas.

Luis Filipe Gomes disse...

As palavras estão gastas!