quarta-feira, 4 de abril de 2018

Beatriz Cunha - Polígonos


Quando me questionaste sobre as tuas novas esculturas com aquela necessidade que só artistas criadores de coisa nova têm em se pôr em dúvida, disse-te:
"-Não sei! É muito novo para mim." Tinhas acabado um ciclo de peças figurativas, antropomórficas: corações, mãos, cabeças, rostos...
Nessa altura o meu enquadramento referencial não funcionou. Senti-me em queda livre sem  rede salvadora ou linha de vida. 
Depois dei por mim pairando, flutuando no espaço, sem Gravidade que me arrastasse numa colisão contra um alvo determinado. Imponderável como um cosmonauta.
"-São poliedros? São sólidos platónicos em desconstrução?" 


Ao ver as tuas novas peças, o meu olhar caminhava de um interior escuro para a luz do ar livre. Sofri essa momentânea falta de visão do ajustar da percepção que impede compreender o que se vê. 

Sem que tivesse dado conta, os teus “sólidos” continuavam as interrogações e a pesquisa que sempre conheci no teu processo criador e existencial. 
A  linguagem; aquilo que percebemos na obra de um artista como fazendo parte intrínseca do que está no seu âmago de maneira a que não o possamos confundir com um outro, era a tua linguagem.  Sim, era bem a tua linguagem que se afirmava naquelas peças aparentemente tão diferentes das anteriores.

O rio e a margem. O côncavo e o convexo. O que está fora e o que está dentro. As interrogações à própria percepção concretizavam-se naquelas arestas perante o meu olhar. O miolo e a concha. O que é o Ser e o que é parecer.  
Os vértices, as esquadrias, os diferentes planos determinavam continuidades, oposições e contradições. Contidas naquelas facetas deparei-me com o que entendemos ser a natureza humana, o que aceitamos em nós, o que toleramos, o que só vemos nos outros.

Como numa heteronímia urdias a trama complexa das maneiras diferentes de sentir. As charneiras que articulamos e nos articulam, as que deixamos paralisadas até se cristalizarem.
Naquelas superfícies tridimensionais são incorporadas muitas outras dimensões. O tempo afirma-se num roteiro de vestígios de construção e desmoronamento. Há faces que resistem e exibem a sua resiliência sem que a sua estrutura tivesse sofrido com o choque; outras, não conseguem esconder o impacto que as deformou até à rotura.
Naquelas peças vi então a procura do ser e do não ser, a abstracção máxima, a procura da forma da própria Alma.

2 comentários:

Bernardette Capelo-Pereira disse...


Belissima carta-ensaio sobre a possibilidade geométrica da espiritualidade, forma suprema da abstracção. Parabéns, Luis !

Luis Filipe Gomes disse...

Obrigado Bernardette!